quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Carta Póstuma ao amigo Fernando Zarif




Querido Zara,
Só mesmo a dor que a sua falta traz é capaz de extirpar de mim o meu mais enraizado pecado capital, a preguiça, e fazer com que eu tome vergonha na cara e volte a escrever. Pois a dor da perda é um sentimento avassalador, dos poucos que são comuns a todos os mortais. Mas cada um lida com a ausência à sua maneira. E nesta madrugada insone, assombrado por pensamentos teus (hoje foi tua missa), nada parece capaz de me salvar da angústia de saber que não vamos mais falar besteiras em algum restaurante, ver um programa de televisão ruim ou escutar alguma música nova sensacional que você, sempre tão antenado, quer mostrar. E então, mais uma vez, como tantas desde que você partiu, começo a passar na mente o filme dos tantos momentos fantásticos que passamos juntos.
Será que a tua memória era tão afiada quanto a tua inteligência? Acho improvável, pois você foi das pessoas mais inteligentes que conheci nesta breve vida. Mas normalmente QI alto = memória de elefante (pensamento que, aliás, me preocupa, pois a minha anda péssima). Sabe que desde que comecei a viajar com meu filme tenho dito às pessoas que estou com alzheimer? Acho que você ia achar graça nisso. É que, nestes últimos meses conheci tantas pessoas, em tantos lugares, foram tantas as estreias, os cinemas, que meu hard drive anda malfuncionando (acabei de roubar essa palavra do inglês). Ainda assim lembro-me com precisão do dia em que te conheci e fiquei encantado pelo afeto generoso com que você sempre presenteava os seus amigos mais queridos. E devo dizer que nossa amizade se deu instantaneamente. Uma amizade improvável, mas entre artistas esses pormenores (como a idade) não têm a mínima importância. Não sei se posso me auto-designar um artista, apesar do relativo êxito que veio de encontro a mim, pois comparado a você sinto-me um diletante, um mero operário.
Mas enfim, como eu ia dizendo, naquele dia, há uns dez anos atrás, tive uma experiência amarga. Eu havia há pouco retomado minha inquieta vocação para atuar protagonizando um curta-metragem de um amadorismo assustador. Naquele dia a diretora do tal curta (essa sim uma diletante) me telefonou para dizer que minha performance era péssima e que uma meia dúzia de cabeças pensantes do Rio supostamente concordavam com a opinião dela. Do alto dos meus parcos 22 anos, com toda a ingenuidade que sempre me foi característica, me deprimi. Telefonei para a Guilhermina que, sempre tão afetuosa, disse que eu fosse de imediato ao encontro dela e do Zé no La Tambouille. Lá chegando estavam, além deles dois, o Otávio (que eu apenas conhecia) e você. Fui obrigado a dividir toda a minha frustração com o grupo, um tanto envergonhado pois não te conhecia. Imediatamente você classificou a moça como "uma puuuuta mala histórica" e, com seu humor afiado (dom que você possuía na mesma medida do Otávio e do Zé, dois grandes atores), todos nós rimos da situação. E em meia hora minha raiva e frustração ficaram para trás e fiquei absolutamente satisfeito de sentir que ali formavam-se novas e importantes relações de amizade.
Pouco tempo depois nós já saíamos para almoçar, muitas vezes com o Otávio, o Zé, e a Vera Holtz, que estavam fazendo uma novela juntos. Era um grupo impagável, e eu, pouco mais que um garoto, me sentia privilegiado de poder conviver com quatro artistas do calibre de vocês. Mas eles faziam a novela lá no Rio e aqui em sampa nossa amizade se estreitava. Logo comecei a incursionar pela fascinante noite paulistana em sua companhia. E devo dizer que sair com você à noite era como ir ao grammy com o Mick Jagger (aliás, certamente deve ser mais divertido a noitada contigo que aquela papagaiada chata). Todos te conheciam e adoravam. Algumas noites chegávamos a ir em 5 boates diferentes. Eu fazia de chauffeur e você cuidava da entrada nos diferentes recintos. E não havia lugar proibido para Fernando Zarif. Entrávamos no box dos DJ's (a maioria amigos teus), camarotes e camarins, e assim fui sendo apresentado a uma fauna interessante e colorida do universo da noite, que sempre me fascinou (devo dizer que desde que você adoeceu não tenho mais achado graça em boate alguma).
Num determinado momento da noite nós nos desencontrávamos. Ou você desaparecia (dando, no dia seguinte, a justificativa de que havia surgido alguma aventura amorosa), ou eu simplesmente não conseguia seguir o teu pique, mesmo você sendo 20 anos mais velho que eu. E mais ainda me espantava quando você me ligava no dia seguinte, às 11 da manhã, eu sonolento, de ressaca, e você querendo sair para almoçar. Pensava: "que espécie de maluco é esse?"
Mas não só das deliciosas frivolidades da noite consistia nossa amizade. Desde o início você foi uma espécie de guia na minha incipiente e de início confusa carreira artística. Quando eu quis ser cantor e aceitei uma proposta da Globo para fazer a pré-seleção do FAMA, você não me censurou. Pelo contrário, elogiava a minha afinação e meu timbre agradável, embora certamente soubesse que não jazia ali a minha verdadeira vocação. Quando eu fui dispensado da atração global (e essa história, que é bem engraçada, fica para outro momento) você me fez acreditar que tudo ia dar certo. E deu.
E foi então que você mudou de vez o meu caminho - para melhor, evidentemente. Em tese esse crédito pertence também ao Otávio, mas tenho certeza que foi ideia sua. Acontece que a Monique (que eu havia conhecido um mês antes jantando no seu apartamento) ia montar o Rio Ota, e você imediatamente sugeriu a ela que me chamasse para um papel qualquer. Nunca me esqueço do dia em que você e Otávio me telefonaram para dizer que tinham "me arrumado um emprego".
"Uma peça de LePage, muito chique" você disse.
Aos 22 anos, Lepage não significava nada para mim. Mas eu já havia entendido que você sabia das coisas, e o frio na barriga me dizia que aquilo era coisa boa. Poucos dias depois a Michele me ligou, e à noite eu fui à casa dela para uma leitura. Lá chegando fiquei tímido. Eram 15 ou 16 pessoas, entre elas o Caco, então uma notável promessa como ator (promessa cumprida, diga-se de passagem). Minha timidez só fez aumentar quando Monique me apresentou ao grupo como Charly Guinle (confusão tão comum Monique, fique tranquila). E assim durante cinco horas nós todos lemos aquela peça e terminamos sem entender nada (quem viu a montagem entenderá que o Rio Ota lido não faz muito sentido) Mas havia uma excitação no ar, a começar pela própria Monique, talentosa e aventureira, que nunca havia dirigido teatro antes. Esse frisson nos uniu de tal maneira que hoje, dez anos depois, somos um grupo unido por um afeto profundo. Mas enfim, eu mal sabia que aquela noite iria mudar a minha vida. E nenhum de nós imaginava que aquela peça tornaria-se um verdadeiro marco na história do teatro brasileiro.
E foi assim, silencioso porém firme, que você esteve presente durante todos os solavancos e conquistas que eu fui tendo como jovem artista.
Como sempre, você queria participar de tudo antes. Quando dirigi meu segundo curta (o primeiro depois que voltei ao Brasil), você foi uma das poucas pessoas que foi à ilha de montagem, na casa do Granato. Você adorou o filme, que pouco tempo depois colheu uma penca de prêmios pelo país afora. Não lembro se você chegou a ver o curta que fiz depois. Mas lembro que me ajudou com a trilha, pois foi uma noite em sua casa, assistindo ao Oscar com o João Vicente, que você me mostrou as músicas do Bowie na voz de Seu Jorge. Ninguém aqui no Brasil tinha ouvido ainda, e eu imediatamente fiquei louco com "Life on Mars" (que eu não conhecia- claro que minha apresentação tardia ao Bowie tinha que vir de você).
Mais recentemente, quando editava meu primeiro longa, você quis vê-lo ainda na ilha (que era longe da tua casa), antes de todo mundo. Você foi a única pessoa que fumou dentro da sala de edição (sempre a única pessoa que fumava onde ninguém mais fumava). Quando o filme terminou, você disse apenas: "Tá tudo certo". E eu respirei aliviado, com a estranha certeza de que meu filme encontraria seu caminho pelo mundo (como de fato tem encontrado, e fico feliz que você tenha testemunhado este relativo êxito). Durante a sessão você pediu que parássemos apenas uma vez, no plano de um passarinho. Ao revê-lo, você perguntou ao Fernando Coster, montador, se o último passarinho que entrava em quadro pousava no fio. Olhamos o material bruto. Pousava. Você então ordenou que deixássemos o plano durar mais alguns quadros, cortando apenas quando a ave se encontrasse segura e firme no fio de luz. E assim ficou.
Você sempre tão atento aos detalhes, it's all about the details!
O início do meu périplo de festivais e exibições, certamente os meses mais eufóricos dos meus anos mais recentes, coincidiu com o agravamento da sua saúde. Nos nossos últimos encontros era evidente que você estava cada vez mais frágil. Mas eu não queria enxergar. Provavelmente foi comigo que você almoçou pela última vez no Ritz (ficamos horas esperando o Otávio, que vinha do Rio) e no Gero (foi aquela, aliás, a última vez que o Rogério te viu- ele disse que você era muito querido por todo o staff dos restaurantes dele, e que todos estavam sentidos, como aliás está o staff do Shintori, a quem eu informei do seu falecimento). Aliás, pouco tempo depois daquele almoço eu viajei, e quando voltei você já estava internado. Na primeira vez que fui te visitar no hospital, passei a pé em frente ao Spot e sentei-me com o Serginho para fumar um cigarro. Depois que ele me congratulou pelo filme e pelo prêmio, contei a ele que estava indo te ver, que você estava, aparentemente, muito mal.
Eu cheguei de algum lugar, acho que foi Montevideo, e durante dois dias te liguei sem parar e só dava caixa. Duas semanas antes você havia dito que ia a Paris, mas eu desconfiei que era mais uma das tuas saborosas brincadeiras e que na verdade você ia se internar uns dias. Por isso quando cheguei liguei para a Bárbara. Ela me disse que você havia sim ido a Paris, mas que lá chegando sentiu-se muito mal e na sua volta foi direto para a UTI. "Vá se despedir do seu amigo", ela me disse. Assustado, fui. Cheguei lá sozinho. Nunca havia entrado numa UTI. Sua mãe, que eu até então não conhecia (mas de quem você sempre falou com tanto carinho) me recebeu com um sorriso sincero e amável, mas que não escondia a evidente angústia que a corroía. Entrei na UTI e fiquei apavorado. Você estava quase inconsciente, todo entubado, com uma cor estranha. Te dei um beijo na testa e fiquei sentado ali, se não me engano com a Vânia. Durante meia hora eu olhava incrédulo para você, e, sem saber, ali começava a desaparecer por completo a ingenuidade que ainda restava dos meus 20 anos.
Voltei a pé do Sírio até a minha casa na Oscar Freire. Quando saí da UTI, tomado por uma desolação desconhecida por mim, resolvi não encarar pessoas no elevador e já na escada de incêndio telefonei para a Michele, querendo dividir aquilo tudo. Mas quando cruzei a Paulista e comecei a descer aquela ladeira enorme a emoção me tomou de assalto. E eu, tão avesso a chorar em público, tive que me esforçar para manter o rumo no meio do pranto que me cegava, enquanto as pessoas me encaravam com pena.
Eu ainda iria mais três vezes te ver no hospital, entre uma viagem e outra. Na primeira delas estavam sua mãe e a Maria, funcionária doce e leal da família. Novamente eu havia chegado ali a pé, vindo do escritório do Mostra de Cinema, onde eu fora buscar o cartaz do meu filme (isso é o verdadeiro cinema independente, não é mesmo?). Meio sem graça, tirei o cartaz do rolo e te mostrei. Você, com o pouco fôlego que lhe restava, foi imperativo: "Coloca aí na parede". Que bom saber que a imagem bela e etérea daquele casal de jovens à beira-mar possa ter te dado alguma paz e conforto estético no seu último mês de vida.
Neste mesmo dia sua mãe retirou-se e Maria foi dar uma volta. Ficamos sozinhos, pela última vez. E resolvi te contar coisas que nunca havia dito, apesar da nossa amizade tão estreita (você, sempre um cavalheiro, jamais ousou invadir a privacidade alheia). Mas naquela tarde, sozinhos, dividi contigo algumas intimidades divertidas. E você sorriu, de súbito ficou mais alerta, acho até que ganhou um pouco de cor na pele. E seu olhar cúmplice me deixou muito feliz, pois soube que mesmo no fim nossa amizade se fortalecia. Depois, enquanto assistíamos televisão (esse martírio da vida hospitalar), eu resolvi comentar o que estávamos vendo. Era uma cena da Maitê Proença, em alguma produção televisiva de época. Infelizmente não era Dona Beija, porque se fosse, até você ia ter se deleitado com aquelas cenas de nudez sob uma cachoeira em Araxá. Não, era qualquer coisa mais recente. Perguntei, meio retóricamente, "O que é isso que estamos assistindo"? E você, sempre tão você, respondeu com aquele tom sarcástico inimitável: "Gente trabalhando mal". Ah, Zara... Quem vai me fazer rir desse jeito agora?
Na minha terceira visita levei o Paulinho. Eu já havia passado pelo choque inicial, portanto para mim ir te ver no Sírio não era um martírio, muito pelo contrário. Era um prazer, um privilégio, como sempre foi, estar perto de você. Mesmo que você estivesse tão frágil, mal podendo falar, inerte numa cama. Mas a cara assustada do Paulinho! Falamos de amenidades, comimos muito chocolate e você parecia melhor, até fumou teu cigarrinho, ali mesmo, no leito hospitalar. E pensar que sob o manto de sofrimento em que você se encontrava, jamais emitiu uma reclamação. Ali eu soube que você possuia mais uma entre tantas virtudes: você era estóico Zara, como correspondia a um descendente desse teu forte povo milenar, os árabes.
A quarta visita eu fiz com a Barbara. Prefiro nem lembrar. Você padecia, aparentava não estar lá. Passamos horas juntos naquela tarde de domingo ali com você, até a hora de dormir. Naquela semana embarquei para Buenos Aires, para realizar um sonho: mostrar o filme para a minha querida família e para a equipe argentina no Malba, aquele museu tão lindo. Só não foi mais incrível porque uma tosse, certamente causada por estresse e excesso de tabaco, mal me deixava falar. No dia seguinte à projeção voltei para São Paulo, e naquela mesma noite embarcava para Portugal, onde seria jurado de um festival de cinema. Entre um vôo e outro, preocupado por minha saúde, liguei para o médico. Era domingo. O Masuda pediu que eu fosse imediatamente ao Sírio me consultar com sua assistente e fazer os exames correspondentes, já que eu não poderia viajar naquele estado. Depois de passar por aquele (leve) sofrimento, tão ínfimo se comparado ao que você passou, fui ao décimo andar te ver. Seu quarto estava vazio. Só não temi pelo pior porque a teia de afetos que te cercava não havia me informado de nada mais grave. O enfermeiro me disse que você estava na UTI. Lá chegando encontrei Maria, fiel escudeira, que me disse que você tinha contraído uma pneumonia e não podia receber visitas. Confesso que viajei aquela noite com o coração apertado. Muito mesmo. Mas por sorte meus dez dias em Portugal, deliciosos, passaram sem nenhum telefonema trágico. Assim que voltei liguei para a Barbara:
"Você acredita que aquele beduíndo desgraçado está em casa?"
"Como assim Barbara?" - gritávamos de alegria.
"Sim, estive com ele hoje à tarde, ele está muito feliz! Liga no celular dele".
Teu celular havia sido roubado no hospital, mas disquei 9656-9696 ("telefone de puta!") e você atendeu com uma voz surpreendentemente boa (inclusive com sua melhor dicção em anos!)
"Quer vir almoçar aqui amanhã?"
Eu mal podia acreditar no que estava ouvindo.
"Vai ter couscous. Só os íntimos. A Monique e a Bárbara vêm"
E lá fomos, Monique e eu, para a sua casa, naquele sábado de sol. De repente parecia que os últimos meses tinham sido apenas um pesadelo. Lá estavam os gatos, a Maria, a música, a pilha de Marlboros na sua cama... e você, presente. Alegre por estar de volta ao lugar que mais amava: sua casa.
Quando a Maria nos chamou para almoçar, a Monique perguntou quais eram seus planos. Era evidente que a pergunta, tão perfeitamente compreensível (mesmo se desnecessária), se referia ao seu estado de saúde (que, todos agora sabíamos, era irreversível, a não ser por um milagre). Você nem se abalou e respondeu:
"Comer um couscous"... Ah Zara. Só você.
E assim foi nosso último almoço. Tudo perfeito: o cousocous com camarão, delicioso, a mesa, com seus talheres de prata, impecável, e o papo, divertidíssimo como sempre. A Barbara chegou, a Letícia tava lá, demos muita risada. De sobremesa um bolo de bem-casado dos deuses, depois cafezinho e você e eu fumamos nosso cigarro. Ainda ficamos um tempo na sala de molho e depois levamos você até a cama, para descansar.
O natal e as férias estavam muito próximos, mas eu estava confiante de que aquela não seria a última vez que nos veríamos. Você estava sereno. Foi uma tarde feliz para todos nós.
No dia 23 de dezembro de madrugada chega uma mensagem de texto. Eu já estava em Pelotas. Era da Michele: "Zarif voltou para a UTI, está muito mal." Não dormi direito e quando o telefone começou a tocar de manhã, eu, debaixo dos lençois, segurei a cabeça. Os nossos amigos, todos tão leais, todos que te queriam tão bem, estavam ligando. Vânia, Michele... Saio da cama. O telefone toca novamente. Atendo. Do outro lado da linha Paulus, aos prantos. Parecia um bebê. Choramos juntos. Mas eu estava longe e tudo parecia sem sentido. Desliguei e fiz as contas na cabeça, constatando que era humanamente impossível voltar a São Paulo a tempo para o seu enterro. Se eu tivesse dinheiro suficiente juro que teria alugado um jato. Meu natal passou em branco. Apenas meu corpo estava em Pelotas, aquela noite na fazenda da vovó (que, meio gagá aos 93 anos, estava num estado semelhante ao meu).
Você partiu há exatos 33 dias (porque foi de manhã, mais ou menos a esta hora). Confesso que o ar, o céu e o vento uruguaio muitas vezes conseguiram ocultar a lembrança da perda para que eu tivesse umas férias mais amenas. Mas nos momentos mais lúdicos e telúricos eu pensava em você e desabava a chorar. Num fim de tarde, vendo o sol se pôr, cercado de afeto, comecei a falar de você. E então chorei, quieto, enquanto o astro-rei se escondia sob aquelas águas misteriosas que não sabemos ao certo se vêm do atlântico ou do Rio da Prata. No primeiro dia do ano, em companhia de Esteban, ator do meu filme (e amigo dos mais queridos) e de um casal de músicos, aconteceu de novo. O rapaz -pianista que foi garoto prodígio na Polônia- começou a tocar todo o repertório do Chopin no Steinway do meu pai (dos poucos luxos que ele se deu, mesmo sem saber tocar piano). Só saberia no dia seguinte eu soube que aquele moço, de 28 anos, não tocava Chopin desde que tinha sete! Mas com que destreza ele pressionava aquelas teclas, com que sensibilidade, de causar inveja a Nelson Freire! Imediatamente me lembrei de você e as lágrimas começaram a despencar dos meus olhos. Como você apreciaria aquilo! Além de você, poucas outras pessoas que me rodeiam entenderiam a beleza e a importância daquele momento, daquele polonês ali, tocando um Steinway, perdido entre as palmeiras de Rocha, no Uruguay.
E então eu me lembrei de outro bordão seu, nosso Oscar Wilde pós-moderno:
"Viver vale a pena."
Despedir-me-ei (invenção), Zara. São sete da manhã. Acredito que quando eu acordar, na contramão do mundo, minha dor vai ter se transformado numa sede de viver daquelas, na tentativa de irradiar à nossa volta beleza, sabedoria e fino humor. Não tenho a pretensão de fazê-lo tão bem como você fazia. Alguns nascem artistas, outros aprendem. Tantos outros tentam e nunca chegam lá.
Mas nestes dez anos de convívio eu aprendi. Você ensinou, e eu aprendi. Você foi o maior artista que conheci, Zara. Sua vida foi sua maior obra de arte. Imprevisível, bela, atormentada, ampla, generosa, inquieta, espontânea, como toda arte verdadeira deve ser.
A Barbara colocou no Facebook (do qual, aliás, você nunca fez parte) que você já deve estar íntimo de Leonardo da Vinci. Eu não tenho a menor dúvida! E espero que você guarde um lugar aí pertinho de você para retomarmos a conversa de onde paramos, tá?
Abraço apertado do seu amigo eterno,
Charly
PS- Obrigado, Zara. Por tudo e por tanto!
Pelo carinho, pela compreensão... Pela sabedoria!
Por ter me apresentado aos seus amigos mais queridos, a Monique, a Bia, a Maria, o Cacá, o Augusto, o Paulus, a Erika (a Barbara e a Vânia eu já conhecia, viu?)
Por todas as pessoas do Rio Ota, meus amigos do peito, que conheci de certa forma graças a você... Em suma, 80% dos meus amigos mais amados eu devo a você, de um jeito ou de outro.
Obrigado pelos almoços deliciosos, pelos jantares, obrigado por me deixar pagar a conta às vezes e me convidar nos momentos em que eu estava duro e não poderia te acompanhar de outro modo....
Obrigado por ter me apresentado ao Shintori, ao Samurai, ao Ritz, à Dedge, ao Vegas, ao Clash, à Torre, ao Xingu,, à Lions (fomos juntos na inauguração, lembra? Com o Pedro, meu irmão) e tantos outros lugares!
Por ter vindo ao jantar que eu dei no final de temporada da peça, mesmo que você nunca tenha vindo aos meus aniversários...
Obrigado por ter me levado às festas do Andrucha, como foram divertidas!
Pelos TIM festivals que vimos juntos, pelos shows do Arnaldo, da Marisa e tantos outros...
Obrigado por ter me ensinado quem eram tantos diretores, escritores, compositores, cantores, autores, pintores...
Pela maneira gentil e generosa com que você tratou a minha família, o carinho e apreço que você tinha pela Guilhermina...
Obrigado pela nossa última temporada no Rio, tramando do alto do teatro do jardim botânico, enquanto sua afilhada aflorava naquele belíssimo espetáculo...
Pelas conversas profundas e esclarecedoras, jogados em qualquer um dos sofás do seu apartamento...
Obrigado pelo final de semana na fazenda... eu sempre tão preguiçoso podia ter ido antes, e mais vezes, foram tantos os convites! (E pena que você tampouco aceitou os meus para ir à Pelotas e ao Uruguai).
Pelas vezes que vimos qualquer porcaria na TV, dando tantas risadas... Eu nunca entendi como alguém que sabia o que era TV Fama podia ser tão absurdamente culto, mais um dos seus tantos paradoxos.
Obrigado pelas festas! Segundo o Tony e o Paulus eu perdi os roaring nineties no Itaim... Mas fui a tantas outras! A que você deu para a equipe e o elenco da Bia e da Maria, que maravilha! E quando eu te cutuquei e disse, "Zara, o Sting tá aí"... e você, "Que Sting?" "Porra Zara, o cantor, The Police, helloo"... "Aonde?" Eu te mostrei. "Imagina, não é ele não." Só nas festas de Fernando Zarif podia aparecer um Sting de penetra....
E no seu último aniversário, de 50 anos? Você já doente (disfarçando e bebendo bem), depois da Lions fomos todos para a sua casa... Lá pelas oito da manhã, com um elenco mix de Fellini, Almodovar e David Lynch, você sorrateira e elegantemente se retirou para o quarto... e eu para casa.
Obrigado pela sua lealdade canina aos amigos de quem você realmente gostava (e você, como poucos, sabia identificar os utilitários e alpinistas).
Você é a única pessoa que eu conheço que jamais falou mal de um amigo. Never. Nem da arte deles. Tudo que Bia, Andrucha, Monique, Arnaldo (qualquer um dos Titãs), Marisa, Calcanhoto, Marina, Paulus, Toni, Michele, Barbara, Vânia, Tunga, enfim, tudo que qualquer um de nós fizesse era bom e aprovado. Claro fiquei que você admirava o talento, mas todos já deslizamos aqui e ali... e você nunca nos repreendeu.
Em suma, pela sua generosidade infinita...
Só lamento que você tenha se esquecido de me dar uma obra sua qualquer, para que daqui até o fim dos meus dias eu tivesse a presença física do seu talento à minha volta. E lamento que eu, sempre tão respeitoso, não tivesse pedido a você, assim, direto.
Você podia ter ficado mais. Não quis, não pôde. Talvez a vida tenha sido um pouco injusta contigo (ela é injusta com a grande maioria de nós, não é mesmo?)
Porque você deu ao mundo mais do que ele deu a você, que merecia ter vivido um grande amor, que talvez o tivesse aterrado aqui conosco por mais tempo...
Mas você nunca reclamou de nada. Estóico e pragmático, soube desfrutar das maravilhas, do seu talento enorme, da sua inteligência arrebatadora, do conforto material que o acaso te deu desde o berço, dividindo estes e tantos outros privilégios com todos à sua volta. E dando muita risada, sempre! Levo comigo o som inconfundível da tua risada!
R.I.P. mon cher, cher ami.

7 comentários:

Unknown disse...

Tantas vezes tentei postar uma mensagem para você, querido amigo de meu filho Fernando. Como artista que é, você captou direitinho as manhas do Fernando, as "boutades", o jeito especial de ser e de viver a vida como ele preferiu. Fico aqui com a minha dor e ao mesmo tempo com a alegria de saber como os bons amigos lhe deram o valor merecido.
Charly, passei a te amar também. Obrigada e um beijo carinhoso
May Zarif

wal disse...

Chequei até aqui via blog da Barbara.
Linda carta de despedida de um verdadeiro amigo.
Nao os conheçi, nao pude resistir em ler e de me emocionar com sua carta de despedida de seu amigo Zarif.
Abraços do Universo

Ivan disse...

Charly,
Desde quando vc. postou a carta ao meu irmão Fernando, estou tentando escrever algo que pudesse expressar o quanto eu e minha família gostamos e nos emocionamos.
Escrevo, apago, escrevo, apago .....e nunca acho que está bom.
Continuo achando que minha resposta não condiz com meus sentimentos, mas uma hora tenho que mandar.
La vai !!!!!:
Muuuuuuuuuuuito obrigado pela homenagem, vc. conseguiu exprimir exatamente como ele era, me fez ir da gargalhada ao choro com essa sua carta.
Um abração
Ivan Zarif Junior

lux gioia disse...

Linda homenagem. Só acho que, pelo que vc nos diz, ele viveu muito. Conheci muitos artistas, intensos, que morreram por volta dos 60 - é como se cada ano vivido por estas pessoas equivalesse a dois.
Este relato, com passagens da vida dele, me fez lembrar a frase de Brecht: temam menos a morte e mais a vida insuficiente. A vida dele, pelo visto, valeu por muitas.
Um abraço,
Stella

Martha Vicente de Azevedo Nowill disse...

lindo querido. um bj enorme.

Unknown disse...

Charly querido, na Pascua algumas pessoas vieram comprar nosso azeite levadas pelas placas que puzemos na estrada e achavam que eram do Hugito, acabo de ler tua despedida do Zarif e me ocorreu que ela serviria pra outras duas nossas perdas irreparaveis a do Hugito e da "la cumbrecita". A dor é inevitavel o sofrimento uma opção .
beijos do mario

Juliana disse...

Olá Charly,
me chamo Juliana e fiquei encantada com seu filme "Além da Estrada". Queria saber se existe a possibilidade de adquiri-lo, acessá-lo na internet ou algo assim. Se puder me mandar um e-mail, agradeceria muito; meu contato é juli_tmtorres@hotmail.com
Obrigada!