Hoje decidi escrever sobre algo que nada tem a ver com Cinema, artes, política ou coisa parecida. Aos meus 2(?) leitores que buscam isso, consultem os blogs de Kleber Mendonça, Rafa Gomes ou Cinética que indiquei em outro post. Hoje quero falar de meus ancestrais.
Não conheci nenhum dos meus dois avôs. Convivi até os dois ou três anos com meu avô paterno mas me vêm apenas a lembrança da imagem de um velho senhor numa cadeira de rodas, numa das muitas e amplas salas do apartamento onde ele morou com minha vó Mercedes. Dizem que, apesar da doença dele (Parkinson- já no fim) chegamos a ter algum intercâmbio- de afeto, palavras, não sei explicitar. Meus tios contam que certa vez eu irrompi na sala onde eles estavam, assustado, berrando "Vovô falou! Vovô falou!". E que eu, quando chegava na casa dos meus avós, logo tirava meus carrinhos de uma malinha e punha-me a trafegá-los pelo corpo inerte do meu avó (e não sei que reação provocava nele). Minha avó Mercedes, mulher deste, eu conheci bem. Éramos muito amigos. Passei inúmeras férias de inverno morando no seu apartamento em Buenos Aires (primeiro aquele enorme, com muitas salas, que me assustava um pouco- depois um mais charmoso na Av. Alvear). Em muitas destas ocasiões éramos eu e ela. Não esqueço nunca de um filme trash sobre marcianos com forma de lagartos que vi na cama com ela. Devia ter uns 5 anos, e aquelas imagens me apavoraram por muito tempo ainda. Lembro também que jogamos infinitas partidas de gamão e de jackete, um jogo praticado no mesmo tabuleiro e com as mesmas fichas mas completamente diferente. Até hoje nunca conheci alguém que não fosse da família que soubesse da existência do jackete (mas sei que não é invenção dos Braun). Vó Mercedes parecia uma criança quando perdia, e amargurada, se via obrigada a pagar-me os poucos dólares que apostávamos.
Minha vó Mercedes foi uma mulher bela e muito, muito distinta. No fim de sua vida sentia-se sozinha. Gostava de ficar horas ao telefone mas seus filhos não tinham muita paciência. Ela sempre me dizia que eles ficavam pouco quando iam visitá-la. Mas tinha um amor incondicional por todos eles. E adorava os netos, que, com meus primos, dividimos em dois grupos: os preferidos e os não preferidos (eu estava no primeiro). Os preferidos ela eventualmente levava para viajar (acho que foram umas três primas para a Europa) e dava presentes. Os outros ela criticava em segredo para nós ("Fulana está gorda!" "O namorado de sicrana se droga"). Quando falávamos do tal namorado (que, me enganei, era de uma das preferidas, minha prima Josefina, que Deus a tenha) ela me dizia que ele era um drogadicto (como se diz na argentina). Ao que eu, do alto de meus 17 anos respondi, "Mas vó, ele só fuma maconha". "Isso pra mim é droga", respondeu ela, em fúria.
Enfim, tínhamos uma relação aberta e de muita camaradagem. Sei de muitos dos segredos familiares graças a ela, que me os contava quase que sem restrições. Era com vó Mercedes que eu trocava cartas quando fui morar fora. E já no fim da minha estada de 5 anos nos EUA é que vó Mercedes faleceu. Um dia recebi uma ligação do meu pai, dizendo que ela estava muito mal e que seria melhor que eu fosse à Argentina. Liguei imediatamente para a Varig, torrei todas as minhas milhas e no dia seguinte empreendi a longa viagem da Califórnia à Argentina. Fui direto ao hospital mas ela estava inconsciente, toda entubada, respirando com a ajuda de aparelhos. Mesmo assim fui tomado por uma ternura extrema, e meu coração se apertou. Na sala de espera revia meus primos e tios tão queridos, e de tempos em tempos ia ao quarto espiá-la, na sua agonia dormida para preencher os pulmões com ar. Numa destas idas, ao pé do leito, ela deu seu último suspiro. Fui a única testemunha. Não havia aquele barulhinho de marcapasso típico de filmes, apenas o silêncio. Meus olhos encheram-se de lágrimas, apesar de sentir dentro de mim uma serenidade quase celestial. Encontrei-me com um primo no corredor e suspirei "Vovó partiu".
No dia seguinte carregamos o caixão dela, acho que seis de seus netos, todos belos homens feitos que a enchiam de orgulho. Estávamos todos alinhados, em ternos escuros, e tínhamos os olhos marejados. Ao passar pela portaria, o porteiro, daqueles argentinos elegantes, apesar de origem modesta, nos dirigiu um olhar também marejado. Imagino que nunca devem ter trocado mais do que um punhado de palavras por vez. Mas que a dignidade e o afeto os uniam mesmo assim. No dia seguinte haviam muitos avisos funebres, cheios de carinho (na Argentina existe esta tradição, entre pessoas da sociedade, de colocar avisos fúnebres).
Com minha avó Antônia, ou vó Tuninha, como a chamamos, a relação foi outra. Intuí desde cedo que não estava no grupo dos preferidos. Ainda assim, ela era mais carinhosa e expansiva que vó Mercedes. À primeira vista era o arquétipo da vó: Os cabelos brancos, com mechas de cinza, sempre penteados cuidadosamente numa espécie de coque. Elegantíssima, vestia tailleurs clássicos, sempre com algum lenço no pescoço ou alguma jóia. Nada ostensivo, mas reconhecia-se de imediato estar diante de uma mulher de classe e fibra. Até hoje gosto de espiá-la quando, de manhã cedo, faz seu penteado em frente à penteadeira antiga que tem em seu quarto, na fazenda onde mora metade da semana. Ou vê-la sentada, uma vez por semana, sob um daqueles aparelhos enormes (e no caso dela velho) onde as mulheres enfiam a cabeça, sabe-se lá pra que.
Impossível falar de vó Tuninha sem falar das coisas que a cercam. A começar pela tal fazenda, a Gruta, onde íamos sempre passar um feriado ou outro por ano. Uma casa de 1828, mobilidada como tal, tem-se a sensação de estar em outro tempo. E minha vó é de fato de outro tempo. Hoje com 89 anos, portanto nascida em 1912, ficou orfã aos 4 meses. Foi criada pelo avô, portanto por alguém que nasceu na médade do século retrasado! Isso não faz dela necessariamente uma pessoa antiquada. Na verdade, contraditória pois ao mesmo tempo em que preserva valores ancestrais, foi uma mulher à frente so seu tempo. Sempre. Herdeira desde o berço, aprendeu a administrar sua fortuna e as contas familiares, já que meu avô, que não conheci, era um aviador aventureiro e apaixonado. Ficou víuva dele muito cedo, antes dos 60.
Mudou-se de volta para Pelotas com a missão de retomar a administração de suas estâncias e salvá-las da ruína. Acordava cedo, montava em seu cavalo e ia para o campo junto com os peões, a quem ordenava com autoridade. Sendo o Rio Grande do Sul uma província machista por excelência, não deve ter sido fácil para ela impor-se no meio da agricultura e da pecuária, tradicionalmente um meio masculino. Mas nesta como em outras empreitadas, ela teve notável sucesso e provocava em seus empregados um misto de temor, respeito e afeto digno de um patriarcado caudilho.
Quando eu me dei por gente ela já não era esta mulher do campo, entregue então à administração da filha caçula, mas ainda assim era uma máquina de trabalho. Sempre às voltas com alguma coisa, fosse a restauração do museu local, uma grande recepção para um ministro ou a construção de alguma casa de filha ou funcionário. Sua casa na estância ainda é um ponto de referência em Pelotas. Só do meio artístico conheço uma dezena de pessoas que em algum momento foram recebidas por ela. Outro dia mesmo Paulo Autran me confidenciou, no camarim do Cultura Artística, que Antoninha havia oferecido a ele um dos almoços mais deliciosos de sua vida. Porque, além de tudo, é uma cozinheira de mão cheia. Até Ana Maria Braga foi parar na fazenda, com seu papagaio (quem quiser tenho uma história ótimo de minha vó com o papagaio!) para gravar diretamente da matriarca a receita do seu delcioso potinho, um doce feito com ovos e chocolate. Entre muitos filmes que lá foram rodados destacam-se O Negrinho do Pastoreio, com Grande Otelo, um da Xuxa e Mauá. Ela hospedou na casa Malu Mader e Paulo Betti. Deste, me disse "um homem extraordinário. Pena que seja petista".
Nos últimos tempos passei a conviver mais intimamente com vó Tuninha. Há mais ou menos uma década, quando chegou aos 80, ela dividiu, tal qual Rei Lear, suas terras em três partes, uma para cada filha. Como minha mãe não morava lá e era alvo de uma desconfiança enquanto à sua capacidade de gerenciar a parte que lhe cabia, vários administradores contratados por minha vó sucederam-se no mando do campo. Chegou a hora em que minha mãe decidiu tomar as rédeas da situação e intimou-me a ajudá-la. Senti que havia uma urgência e importância em seu chamado que fez com que deixasse temporariamente meus projetos artísticos de lado e me dedicasse, em meio período, aos assuntos do gado, da soja, das galinhas, enfim, da terra. Todo mês tenho passado uma semana ou 10 dias por lá e invariavelmente fico bastante tempo a sós com vó Tuninha.
Esta convivência tem sido extremamente enriquecedora e sei que as lembranças destes tempos acompanharme-ão até o fim da minha vida. Pois estou testemunhando de perto o fim de uma vida intensa, permeada de história e com elementos dignos de um romance de Somerset Maugham.
Vó Tuninha, nos últimos dois anos, caiu duas vezes e quebrou ambos os lados do fêmur. Hoje, sua mobilidade está bastante restita. Precisa de alguém que a ajude a levantar (da mesa, da cama, do sofá, do carro) e caminha lentamente, apoiada num andador. Isso a deixa visivelmente aflita. Para alguém que sempre teve poder, depender de outros para exercer seu direito de ir e vir parece ser uma condena implacável. Além da mobilidade física, ela vêm perdendo, aos poucos, o que se chama de lucidez. Vez por outra ela diz alguma coisa absurda (embora isso seja recente e venha em rompantes que passam). E em seguida pode dizer algo da mais cruel e absoluta lucidez. Pois sua doçura, aparentemente sem fim, é permeada, entre os íntimos, por observações cortantes sobre aqueles que a cercam. Estas vêm em rompantes que beiram a fúria. E eu, por ser alguém que não teme assuntos pôlêmicos (pelo menos não com as minhas avós) já fui testemunha de inúmeros. Já cheguei, inclusive, a provocá-los, divertindo-me em segredo.
"E fulano, vó?"
"Ah, que horror!" exclama ela, com sua inconfundível voz aguda. "Nojento! Fulano é um nojento", grita ela, com cara de asco. E eu rio internamente.
Nem sempre, porém, estes rompantes são agradáveis. Há, entre minha vó e minha mãe, uma tensão sutíl e permanente, fruto de anos de desentendimentos. E entre elas já fui testemunha de rompantes que prefiro não lembrar.
Vó Tuninha é uma personagem fascinante. Intensa, contraditória, amável e ultimamente terna como nunca. Nestes últimos tempos é como se, de súbito, me tivesse revelado toda a sua carência e vulnerabilidade frente ao que evidentemente é o final de sua vida. Desde pequeno a ouço dizer que quer ir embora (do mundo), que já está velha. Mas o que ela dizia sempre parecia incongruente perante aquele colosso (para usar uma palavra dela) de mulher, forte, altiva. Agora, suas palavras parecem verdadeiras.
Ao mesmo tempo em algum recanto meu suspeito que não sejam inteiramente verdadeiras. Quem quer realmente partir deste mundo, salvo os suicidas?
Mas ela parece estar indo aos poucos. E ser testemunha disto me enche de tristeza e ternura. Vejo como ela ainda busca ser útil ao mundo, sempre com uma sensação de dever a cumprir, enquanto costura qualquer coisa. Passa horas e horas arrumando fronhas antigas. "Não se deve desperdiçar as coisas", ela me diz.
E me conta histórias, fala da beleza do Rio Grande (como ela chama o Rio Grande do Sul), terra de homens valentes, justos e dignos. Nada pode lhe dar mais prazer do que qualquer coisa associada à sua terra com suas tradições. Só tia Rita.
Tia Rita, sua filha mais velha e descaradamente preferida, parece ser a única pessoa que a traz imediatamente ao presente. Que a distancia de seu passado longo e cheio, ou de seu futuro curto e incerto. É notável e comovedora a afinidade entre as duas.
Assim sendo tenho tido mais prazer quando vou a Pelotas. Em meio a reuniões com contador, advogado, fornecedores e demais adentro ao microcosmo que é a casa da minha avó. Com ela converso, tomamos chá (pontualmente às 5) e assistimos televisão. Vemos a novela, já que outra de suas alegrias é ver minha irmã, ao vivo ou na TV. E ela é a crítica mais ferrenha do trabalho de minha irmã. Certa vez, quando esta desempenhava seu primeiro papel na rede Globo, uma secretária de escola, minha avó desabafou:
"Fico furiosa com a Rede Globo. Como pode colocar a Guilhermina pra entrar, dizer qualquer bobagem e servir um copo d´água?".
Outro dia vimos Brokeback Mountain. Ela prestou atenção do início ao fim e compadeceu-se com aquelas figuras que chamou de tristes.
E assim nos tornamos mais próximos. Outro dia, quando fui lhe dar boa noite, ela me puxou e disse: "Meu Charly, fico tão feliz de estar te conhecendo melhor".
Mais uma das muitas lições que vó Tuninha há de me deixar: Nunca é tarde demais.